Portal

Uma seringa pingando sangue e avançando na direção de pessoas pode ser o último fato lúcido e palpável antes de o portal abrir e o mundo perder seu foco e nitidez. Ele sentia correr em seu interior o ódio de portar e hospedar um vírus. Um ônibus lotado não parecia nada ruim para disseminar seu rancor e fazer dos outros ao redor parceiros de mesma doença. Chuva intensa dando rajadas de vento frio e respingos nas janelas. As respirações liberando vapor. Vapor apregoando-se nos vidros cheios de fuligem. Não se pode ver nada, tudo nublado e embaçado lá fora. Ele retira a agulha de uma das veias protuberantes do braço esquerdo, tudo meio velado e encurvado para que ninguém veja. Levanta. Empunha a seringa como quem aponta uma arma e faz um círculo no ar no sentindo horário, marcando o rosto de três pessoas. Uma brecha horizontal se abre na face das três e o sangue que sai delas é quente e salpica o chão de um ônibus que nunca mais vai voltar pra garagem. “Todos aqui tremam! Essa é a hora fatídica que os fluidos se misturam e tudo será transformado!” – grita. Pelo retrovisor, deu pra ver os olhos do motorista. Espanto e indecisão sobre o próximo passo.

Freio.

Todo mundo vai para a frente na mesma onda e, nessa queda, uns sobre os outros, o homem da seringa movimenta o braço perfurando mais de meia dúzia. Continua riscando o nada e apertando o tubo da seringa a fim de expurgar sangue contaminado. O furdunço, o desequilíbrio, as caras de pavor e as mãos espalmadas marcando rastros de dedos em janelas ainda embaçadas, agora escarlates.

O motorista abre as portas.


Pelas duas, da frente e de trás, alguns corpos são deixados pelo caminho antes que o ônibus comece a sacolejar as pessoas, como se fossem frutas num liquidificador. Eles estão capotando todos no mesmo caminho, giro após giro, em direção a um mesmo fim. O ônibus não voltará para a garagem. E, aidéticos ou não, eles terão de aprender a viver em outro lugar, desconhecido e novo, porque o portal se abriu.
Houve uma passagem.

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